quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

O dilema democrático

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"O Ocidente foi apanhado de surpresa nesta vaga de contestação a alguns regimes islâmicos. Encoraja mudanças desde que não belisquem os seus interesses.
A democracia é e sempre foi uma ideologia e um regime político de caracterização complexa. Hoje é ainda mais, na medida em que se tornou a ideologia e o regime monopolizadores do apreço e da rectidão política, a que aspiram todos os governos da terra .
No tempo da Guerra Fria, as ditaduras partidárias comunistas autodenominavam-se democracias populares. Nos nossos dias um vasto leque de regimes que estão longe de respeitar os direitos e garantias individuais e a propriedade dos seus cidadãos, também se intitulam democráticos. Como outros que ostensivamente manipulam eleições e despacham os seus adversários através de esquadrões da morte.
Uma das razões desta confusão está na ambiguidade do próprio conceito: das duas tradições democráticas, uma, a anglo-saxónica, privilegiou a protecção dos direitos individuais, a liberdade e as liberdades dos indivíduos perante o Estado. É a democracia segundo Locke, Adam Smith, os Whigs ingleses, os Founding Fathers americanos, a Gloriosa Revolução de 1688.
A outra democracia é a do governo de maioria, a democracia igualitária, de Rousseau e da vontade geral. Definida esta vontade geral e popular por maioria de votos, os governantes eleitos são como monarcas absolutos, podem fazer o que lhes der na gana. É a democracia totalitária, identificada por Talmon, praticada pela Revolução Francesa, talvez com alguma glória, mas sobretudo com muito sangue.
As revoltas populares no mundo islâmico, do Magreb ao Médio Oriente vêm pedindo o fim de uma série de regimes pessoais ou familiares, caracterizados pelo autocratismo, inamovibilidade e personalização do poder e pela corrupção. Aquilo a que alguns chamam cleptocracias.
Esta vaga popular está a atingir uma larga faixa do mundo islâmico, até aqui imune ao contágio democrático, da Argélia ao Irão, da Líbia ao Bahrein, do Egipto ao Yemen.
Como sempre, os ocidentais, Europa e Estados Unidos, além de serem surpreendidos são contraditórios nas reacções. Praticaram, durante muito tempo, uma Realpolitik de Estado, mantendo relações normais, quando não-amigas, com os governos existentes. Quando a crise rebentou, tiveram atitudes ambíguas: por um lado, um discurso emotivo e populista, por outro, debitavam cautelosos avisos à navegação, no sentido de que tudo vai bem, escolham democraticamente quem quiserem, mas cuidado não vos venha à cabeça escolher fundamentalistas islâmicos...
Não é preciso ser Aristóteles ou Russell, para perceber o contraditório desta prevenção embora, se considerarmos a ambiguidade do conceito de democracia que expusemos acima, ela pode explicar-se.
A mensagem contida nos avisos de Washington e da UE será no sentido de que não se poderiam escolher - democraticamente (no sentido rousseauniano) - forças políticas que não sejam democráticas (no sentido anglo--saxónico) que não garantam a protecção dos direitos individuais pré-políticos e anteriores à própria Constituição. E subentenda-se, sejam hostis a Washington e a Israel. Foi aliás na base desta filosofia, pressupondo que o povo infalível se possa enganar às vezes, que o Ocidente, de Paris a Washington, cobriu o congelamento, pelos militares argelinos, das eleições de 1992, que deram a vitória aos religiosos.
Só que, desta vez, a força e a velocidade das coisas são muito maiores e vai ser difícil explicar aos povos do mundo islâmico estas subtilezas conceptuais. Abriram-se portas que não se podem fechar e a democracia condicionada e vigiada nem sempre acontece, como gostariam os optimistas."

Jaime Nogueira Pinto
in i, n.º560, 21 Fevereiro 2011.

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