quarta-feira, 19 de março de 2014

Heidegger, o Nacional Socialismo e o Anti-Semitismo: Um “não-caso” que se reabre

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A julgar pelo recente “caso Heidegger” que aparenta vislumbrar-se no horizonte, o princípio ne bis in idem – ninguém pode ser julgado duas vezes pelo mesmo crime – encontra alguns obstáculos à sua transmigração do direito penal para o debate filosófico. Os réus são neste caso os “Cadernos Negros”. Isso mesmo, “Schwarzen Hefte”.

Trata-se de uma colectânea de escritos datados de um período compreendido entre 1931 e 1946, num total de 1200 páginas que, de acordo com os rigorosos prazos editoriais que regulam o destino da publicação heideggeriana, serão dados a conhecer ao público ainda durante o mês de Março. Peter Trawny, Professor da Universidade de Wuppertal, é um dos especialistas responsáveis pela revisão destes inéditos. Depois de ler os “Schwarzen Hefte” este investigador preparou uma acusação filosófica que aguarda publicação a qualquer momento, mas que já fez estremecer a coluna vertebral aos heideggerianos de todo o continente. Trata-se de um ensaio com aproximadamente sessenta páginas intitulado “Heidegger: Os Cadernos Negros e o Anti-Semitismo Histórico”.

Este estudo debruça-se sobre a quinzena de vezes que o filósofo se referiu abertamente ao judaísmo, criticando a sua “faculdade de cálculo”, o seu “acentuado dom para a contabilidade”, a sua “capacidade tenaz para calcular”, o “desenraizamento do Ser” que nasce do “judaísmo internacional”, a “falta de terra” do povo hebraico, etc. Encontra-se também presente neste estudo “um esclarecimento destinado aos burros: estas notas nada têm a ver com anti-semitismo que é, por si só, algo de abjecto e desprovido de sentido...” Existe matéria suficiente para reabrir o processo, mas não para o concluir. Este meritório debate arrisca-se a ser mais cansativo do que a investigação etimológica levada a cabo pelo próprio Heidegger, capaz de alongar-se em várias páginas apenas com o intento de traduzir um simples adjectivo. Mas esta é a história de todo o caso Heidegger. A começar pela sua autodefesa, já em 1945 com “O Reitorado 1933-1934”, numa tentativa de esclarecimento acerca das acções tomadas em Freiburg durante os meses que se seguiram à tomada do poder por Hitler e cujos conteúdos foram posteriormente enfatizados na sua célebre entrevista póstuma dada ao “Spiegel”. Aqui poderemos encontrar algumas tentativas de “contextualização” dessas acções, mas nenhum arrependimento. Escrevendo nesse o mesmo período a Marcuse, Heidegger argumentou ter visto em Hitler “uma saída para o Dasein ocidental face aos perigos do comunismo”, atacando aqueles que “julgam o início do movimento nacional-socialista apesar dos seus êxitos”, apelando à memória das violências sofridas pelos alemães de Leste logo após a ocupação soviética.

Saindo da filosofia através da porta alemã, Heidegger reentra na mesma através da janela francesa, sendo idolatrado pelos jovens filósofos do outro lado do Reno que, assegurava ele, sempre que queriam verdadeiramente pensar, eram obrigados a fazê-lo em alemão, ou seja, através da linguagem heideggeriana. Em Itália foi Gianni Vattimo a propor a existência de uma potência emancipatória inerente à obra “Ser e Tempo”. Se o Ser não “é”, mas “se dá”, quem pretender falar em nome próprio equivale-se àqueles indivíduos que procuram resolver as zaragatas em discotecas gabando-se das suas associações à máfia local. Uma espécie de “bullying” metafísico. Quem afirma ser um amigo do Ser é apenas o fanfarrão que, na realidade, não conhece ninguém, restando-lhe apenas um diálogo estabelecido em pé de igualdade (que não é exactamente o que acontece nas lutas na discoteca). Generoso, Vattimo reconhece a existência de pelo menos duas leituras políticas do pensamento heideggeriano e explica – na introdução à obra “Escrita e Diferença” de Derrida – que “podemos falar, recuperando-se, não tudo arbitrariamente, a terminologia aplicada à escola de Hegel, de uma direita e de uma esquerda heideggeriana”: de um lado a mística da Floresta Negra, do outro a superação da metafísica. Ora, isto é uma mentira. Na realidade, só existe um Heidegger de “direita” e um “fascista”, o outro, de esquerda, não passa de uma invenção.

A leitura progressista de Heidegger passa por um período de choque no final da década de 1980 quando Victor Farías, um ex-aluno chileno do filósofo, atira uma pedra contra a vitrina do pretenso heideggerismo redimido. Em “Heidegger e o Nacional Socialismo” ele investiga a fundo a relação entre o filósofo e o regime. Além de lembrar-nos que Heidegger, até 1945, pagava regularmente a sua quota anual no NSDAP, Farias reconduz o filósofo ao panteão do “Nacional-Socialismo de esquerda”, o das SA, explicando o seu isolamento durante os anos 1930, como um efeito colateral da “Noite das Facas Longas”.

A intelligentsia iniciou de imediato os seus reparos. Um dos frutos mais delirantes do conselho de defesa permanente do filósofo é a colectânea “Escritos Políticos”, editada por François Fedier, na qual “A auto-afirmação da Universidade Alemã” – o famoso discurso do reitorado –, torna-se “A Universidade Alemã firme em si mesma apesar de tudo”, enquanto a frase “que as regras do seu ser não são nem fórmulas doutrinárias nem “ideias”. O próprio Führer, só ele, é a realidade alemã de hoje” torna-se a prova de que o filósofo “se voltou para Hitler, mas não para o programa ou visão nacional-socialista do mundo”. O “Sieg Heil” tantas vezes pronunciado por Heidegger vem de resto explicado como um convite à paz, partindo do pressuposto que os actuais esquiadores ainda hoje se cumprimentam com um “Ski Heil”.

Uma contra-resposta surge por parte de Emmanuel Faye que, estudando os seminários inéditos de 1933 e de 1935, chega à conclusão de que Heidegger é apenas “A introdução do Nacional-Socialismo na Filosofia”, tornando o “filósofo” (que Faye coloca entre aspas o “philosophe” Heidegger e a “philosophie” heideggeriana...) ainda mais um pensador nacional-socialista, mas um nacional-socialista ‘tout court’ que deve ser expurgado da história da disciplina de Platão e Kant. A pesquisa é meticulosa, no entanto viciada por um excesso de zelo. A esquematização dos eixos poéticos d’O Reno de Hölderlin torna-se assim numa cripto-suástica, enquanto um verso do poeta romântico que fala do fogo e que era mencionado no curso de 1942 é julgado como sendo “tragicamente perturbador”, porque, nesse ano “o fogo que crepita e ascende é o dos campos de extermínio: Belzec, Sobibor...”

Nova investida, nova ofensiva filo-heideggeriana. O habitual Fedier procurou rebater estes argumentos com um panfleto: “Heidegger, à plus forte raison”. Também Vattimo regressa a este confronto, defendendo que “Heidegger, com sua adesão ao Nacional-Socialismo fez uma acção corajosa. [...] Desceu ao campo, realizando a sua ideia pessoal de intelectual engagé. Que essa fosse uma ideia errada, isso é uma outra história. Mas sujou as mãos.” Raciocínio que é a base para a entrada de Slavoj Žižek que argumenta: “Heidegger é grande não apesar disso, mas graças ao seu compromisso com os nazis.”

Resumidamente, não há saída. Esta versão “travagliesca” da filosofia, embrenhada nesta morbidez de revista cor-de-rosa, instiga a uma busca de “evidências” e “conspirações”, conduzindo a algo totalmente falacioso. A divisão entre bons e maus funciona mal quando se trata de decifrar a história, e muito mal se quisermos compreender qualquer coisa de filosofia que, de resto, vê a parte dos maus multiplicar-se em vários nomes, tendo Popper a encabeçar o topo dessa lista. Podemos também agarrar-nos aos vestígios de uma moral de polícia para dar-se um certo tom à vida, contudo, convém saber-se de antemão que a realidade funciona de uma maneira completamente diferente.

Por outras palavras: “Heidegger é certamente um grande filósofo que foi, ao mesmo tempo, um nazi entre tantos. Apenas isso. A filosofia pode contentar-se!” (Alain Badiou).

Adriano Scianca
Licenciado em Filosofia pela Universidade La Sapienza (Roma), jornalista e responsável nacional pelo departamento cultural da CasaPound, é autor dos livros “Riprendersi Tutto” e “Ezra fa Surf”.

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