"É comum referir e criticar a arrogância alemã e sublinhar os vícios e perigos de uma Alemanha unida e poderosa que hoje manipularia as instituições e regras europeias para dominar os povos seus devedores e tributários.
Nos portugueses instruídos (os que restam), feitos e criados quase sempre na cultura francesa e anglo-americana, há a tendência para ver uma História alemã de clichés: Bismarck fez a reunificação em 1871 e a guerra de 1914 foi um produto da hubris do Kaiser. Depois veio a derrota de 1918, a humilhação de Versalhes, a consequente tomada do poder por Hitler, a guerra, o holocausto, a culpa, a ocupação, a reconstrução por Adenauer e Ehrardt, a Europa franco-alemã, a reunificação de Kohl, o euro e Merkel.
A questão da História alemã é mais complexa e em vez deste olhar linear, há que pensar a odisseia e tragédia do país e do povo para tentar perceber o presente.
Quando Bismarck juntou a nação alemã, sob o poder militar da Prússia, percebeu que o novo Reich era grande demais para a Europa e que tinha de se conter nos seus limites. Mas Guilherme II e a força das coisas alteraram este plano conservador.
Por isso a Alemanha viveu, na primeira metade do século XX, uma guerra de 30 anos, muito especial: 10 em guerra com o mundo e outros 20 em guerra civil. De 1914 a 1918 enfrentou a coligação de todos os grandes poderes da época – Grã-Bretanha, França, Rússia, EUA. De 1918 a 1933 atravessou um clima de guerra civil de baixa intensidade, mas com milhares de mortos: revolução spartakista em Berlim, revoluções bolcheviques na Baviera e no Ruhr, a luta entre a direita radical e os comunistas, que se estendeu a toda a Alemanha, com os corpos francos e as milícias operárias na linha da frente. E nas fronteiras do Leste, no Báltico, uma guerra duríssima, feroz, sem prisioneiros.
A partir de 1923 e do falhado golpe de Munique de Hitler deu-se uma quebra da violência. Mas o clima de guerra civil prosseguiu até à tomada do poder pelos nacionais-socialistas em 1933. Daí à Segunda Guerra, com o liquidar da oposição, foram mais seis anos.
No pós-1945, os alemães foram ainda mais maltratados que em 1918, embora tal se tentasse camuflar. Os sentimentos de retaliação na União Soviética e no Leste em geral, mais a ideia de punição sobre o povo (apesar da teoria de considerar os nazis como os únicos culpados da guerra, da derrota e da degradação do país) tiveram consequências.
O castigo foi um apocalipse moderno, começado com os bombardeamentos que queimaram e arrasaram a maioria das cidades e mataram 700 mil alemães até às limpezas étnicas, por expulsão, da Europa Central para Oeste. Além dos massacres, terão sido 10 milhões de alemães – da Ucrânia, da Polónia, da Checoslováquia, dos Balcãs e do Báltico – agarrados como gado e deportados, mais 12 milhões de soldados da Wehrmacht, prisioneiros dos Aliados, soviéticos e dos ocidentais. Dos três milhões detidos pelos russos, em cada três, um morreu de fome, doença ou maus-tratos nos campos de prisioneiros.
Estamos a falar de mais de 20 milhões de criaturas maltratadas, há 70 anos e das justificadas más memórias suas e dos seus descendentes. Que não será esquisito que perdurem."
Jaime Nogueira Pinto
in "Sol", 26 de Julho de 2013.
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