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Com Dominique Venner
Numa
das suas missivas, redigidas numa escrita angulosa, Dominique Venner
escrevia-me que “a memória das origens é o alimento da alma”. Tão bela
quanto justa – é um todo –, a fórmula ilustra o talento do seu autor, um
atirador que nunca falhava o seu alvo. A bem-vinda reedição de “Le Cœur rebelle” [“O Coração Rebelde”, inédito em português], na minha opinião o seu mais belo livro a par do “Dictionnaire amoureux de la chasse”,
permite-nos compreender: pegando no meu exemplar de 1994, lido com
entusiasmo e júbilo, recaio sobre as minhas múltiplas anotações a lápis.
Vinte anos depois da sua primeira leitura, cada frase sublinhada ainda
fulmina. Que belo hino à determinação viril, que vigorosa carga contra a
decadência e a resignação! O antigo cadete da Escola de Guerra de
Rouffach, uma espécie de mosteiro guerreiro fundado por De Lattre, o
antigo comando da fronteira tunisina, o antigo militante radical que
planeará assassinar De Gaulle no Eliseu, o futuro historiador
“meditativo”, Venner o espartano deixa-nos aqui o fundo do seu
pensamento e, como o precisa num posfácio inédito datado de 2008,
exorciza o seu passado. O cúmulo para um homem tão púdico, que detestava
as histórias de antigos combatentes e a quem, paradoxo para um
historiador, o seu próprio passado deixava indiferente. Nascido de uma
dor e de um esforço sobre si próprio, “Le Cœur rebelle” é de alguma forma um misto do “Jeune Européen” de Drieu e de “La Guerre notre mère” de
Jünger – o manual do insurgente moderno.
Sem ser ingénuo, Venner congratulava-se de ter podido conhecer “o casal
divino, a coragem e o medo” outrora cantados por Drieu após a carga de
Charleroi, como uma guerra quase feudal, a última (?) que deixava ainda a
iniciativa ao indivíduo e não à máquina. Se não escondia a face atroz
da sua guerra da Argélia, onde descobriu a crueldade pura (“uma criança
triturada como uma lebre”), Venner descrevia bem a traição da
retaguarda, o masoquismo odioso dos progressistas, a sua cobardia com
pretensões humanitárias. Para Venner, esta guerra que nunca ousou
verdadeiramente dizer o seu nome constitui uma experiência fundadora.
Estou aliás convencido de que o seu suicídio foi a sua última
consequência: o homem de espada, que durante tantos anos havia reprimido
as suas pulsões nascidas do estrondo das armas, quis voltar a juntar-se
aos seus camaradas do “djebel”, de pé, com os olhos abertos e pelo sangue derramado. Como ele escreve em “Le Cœur rebelle”,
onde o tema do suicídio – o de Montherland e o do seu amigo Grossouvre,
que se matou no seu gabinete no Eliseu – conclui o ensaio de maneira
profética: “alcançar a sua morte é um dos actos mais importantes da
vida”.
Das muitas páginas que poderiam ser citadas, escolho a última, que é de
um escritor de raça e que não pode deixar de virar do avesso todas as
almas de qualidade, de onde quer que elas venham: “Sou do país das
árvores e da floresta, do carvalho e do javali, da vinha e dos telhados
inclinados, das canções de gesta e dos contos de fadas, do solstício de
Inverno e das festas de São João no Verão, das crianças loiras e dos
olhares claros, da acção obstinada e dos sonhos loucos, das conquistas e
da sabedoria. Sou do país onde fazemos o que devemos porque o devemos
em primeiro lugar a nós próprios.”
Leiamos este livro, ofereçamo-lo às jovens almas ardentes. E saudemos
Pierre-Guillaume de Roux, o editor, e Bruno de Cessole, o prefaciador,
pela sua fidelidade a um amigo desaparecido.
Testemunho sobre uma juventude de tempestade, tratado estóico de
saber-viver, reflexão sobre a acção, meditação sobre o trágico, “Le Cœur rebelle”
ficará e encontrará novos leitores, porque este livro extraordinário
ilustra o primado do estilo sobre as ideias, do instinto vital sobre as
abstracções. “Le Cœur rebelle”, ou o suor e o sangue transmutados em espírito.
Christopher Gérard
Dominique Venner, Le Cœur rebelle, édition augmentée et préfacée par Bruno de Cessole, Pierre-Guillaume de Roux, 22€.
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Três perguntas a Dominique Venner
sobre “Le Cœur rebelle”
Christopher Gérard – Em “Le Cœur rebelle” evoca com
simpatia “um jovem intolerante que levava em si mesmo como um odor de
tempestade”: você mesmo no tempo dos combates militares na Argélia e,
depois, políticos em França. Quem era então este jovem Kshatriya, donde vinha, quem eram os seus mestres, os seus autores predilectos?
Dominique Venner – É aqui que encontramos uma alusão ao “gerfaut”
da sua primeira pergunta, recordação de uma época estimulante e
perigosa onde o jovem que eu era acreditava poder inverter um destino
contrário através de uma violência assumida. Isto pode parecer
extremamente presunçoso, mas, à época, eu não reconhecia qualquer
mestre. É claro, eu ia procurar estímulos e receitas no “Que fazer?”, de
Lenine, ou em “Os Reprovados”, de Ernst von Salomon. Acrescento que as
leituras infantis contribuíram para forjar em mim uma certa visão do
mundo que no final foi muito pouco desmentida. Em conjunto, citarei “Éducation et discipline militaire chez les Anciens”
[“Educação e Disciplina Militar nos Antigos”, de Marcel Poullin
(1883)], pequeno livro sobre Esparta que vinha do meu avô materno, um
antigo oficial, “A Lenda da Águia” de Georges d’Esparbès, “O Bando dos
Ayacks” de Jean-Louis Foncine, “O Apelo da Floresta” de Jack London,
enquanto não lia mais tarde o admirável “Martin Eden”. Tratavam-se de
livros formadores dos meus dez ou doze anos. Mais tarde, por volta dos
vinte ou vinte e cinco anos, tinha passado naturalmente a outras
leituras, mas as livrarias eram então mal fornecidas. Era uma época de
penúria intelectual da qual não temos ideia hoje. A biblioteca de um
jovem activista, mesmo de um devorador de livros, era magra. Na minha,
por entre obras históricas, figuravam “Reflexões sobre a Violência” de
Georges Sorel, “Os Conquistadores” de Malraux, “Genealogia da Moral” de
Nietzsche, “Serviço Inútil” de Montherland, ou ainda “O Romantismo
Fascista” de Paul Sérant, revelação dos anos 60. Vemos que não ia muito
longe. Mas se as minhas ideias eram curtas, os meus instintos eram
profundos. Muito cedo, enquanto ainda era soldado, senti que a guerra da
Argélia era uma coisa diferente do que se dizia ou do que pensavam os
ingénuos defensores da “Argélia francesa”. Percebi que se tratava de um
combate identitário para os europeus porque na Argélia estavam ameaçados
na sua própria existência por um adversário étnico. Senti igualmente
que lá defendíamos – muito mal – as fronteiras meridionais da Europa.
Contra as invasões, as fronteiras defendem-se sempre para além dos mares
ou dos rios.
Neste livro, que é um pouco a sua autobiografia, escreve: “Sou do
país das árvores e da floresta, do carvalho e do javali, da vinha e dos
telhados inclinados, das canções de gesta e dos contos de fadas, do
solstício de Inverno e das festas de São João no Verão.” Que estranho
paroquiano é você, afinal?
Para dizer as coisas de maneira breve, sou demasiado conscientemente
europeu para em nada me sentir filho de Abraão ou de Moisés, ao mesmo
tempo que me sinto plenamente o de Homero, de Epicteto ou da Távola
Redonda. Isto significa que procuro as minhas referências em mim, o mais
próximo das minhas origens e não num lugar longínquo que me é
perfeitamente estranho. O santuário onde me vou recolher não é o
deserto, mas a floresta profunda e misteriosa das minhas origens. O meu
livro sagrado não é a “Bíblia”, mas a “Ilíada”, poema fundador da psique
ocidental, que atravessou miraculosa e vitoriosamente os tempos. Um
poema que vai às mesmas fontes que as lendas célticas e germânicas de
que manifesta a espiritualidade, se nos dermos ao trabalho de o
decifrar. No entanto, não esqueço os séculos cristãos. A catedral de
Chartres faz parte do meu universo da mesma forma que Stonehenge ou o
Partenon. Esta é a herança que é necessário assumir. A História dos
europeus não é simples. Depois de milénios de religião indígena, o
cristianismo foi-nos imposto por uma série de acidentes históricos. Mas
foi ele próprio em parte transformado, “barbarizado” pelos nossos
antepassados, os bárbaros, os francos e outros. Foi amiúde vivido como
uma transposição dos cultos antigos. Atrás dos santos, continuou-se a
celebrar os deuses familiares sem se fazer grandes perguntas. E nos
mosteiros recopiavam-se os textos antigos sem necessariamente os
censurar. Esta permanência é ainda verdadeira hoje em dia, mas sob
outras formas, apesar dos esforços da predicação bíblica. Parece-me
necessário ter em conta a evolução dos tradicionalistas que constituem
tantas vezes ilhas salutares, opondo ao caos ambiente as suas famílias
robustas, as suas crianças numerosas e o seu agrupamento de jovens em
boa forma. A perenidade da família e da pátria que eles reclamam, a
disciplina na educação, a firmeza nas provas não tem evidentemente nada
de especificamente cristão. São réstias da herança romana e estóica que a
Igreja mais ou menos assumiu até ao início do século XX. Inversamente, o
individualismo, o cosmopolitismo actual, o culpabilismo são heranças
laicizadas do cristianismo, como o antropocentrismo extremo e a
dessacralização da Natureza nos quais eu vejo a fonte de uma modernidade
faustiana enlouquecida de cujos efeitos pagaremos um elevado preço.
Em “Le Cœur rebelle” diz também: “Os dragões são vulneráveis e mortais. Os heróis e os deuses podem sempre regressar. Não há fatalidade a não ser no espírito dos homens.” Pensamos em Jünger, que conheceu, que via em acção Titãs e Deuses…
Matar em si próprio as tentações fatalistas é um exercício que não
tolera descanso. Quanto ao resto, deixemos às imagens o seu mistério e
as suas múltiplas radiações, sem as apagar com uma interpretação
racional. O dragão pertence desde a eternidade ao imaginário ocidental.
Ele simboliza umas vezes as forças telúricas, outras as forças malignas.
Foi pela luta vitoriosa contra um monstro que Hércules, Siegfried ou
Teseu acederam ao estatuto de herói. À falta de heróis, não é difícil
reconhecer na nossa época a presença de diversos monstros, que eu não
creio que sejam invencíveis mesmo que o pareçam.
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