terça-feira, 1 de outubro de 2013

As almas do Purgatório

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"O oceano é um vasto cemitério, principalmente para Portugal. O mar, esse é a campa, é o cemitério desta desgraçada pátria de Vasco da Gama, de João de Castro, de Albuquerque, de Cabral, de Magalhães, de todos os maiores navegadores do mundo, desta pátria do Infante D. Fernando, do rei D. Sebastião, que morreram além do mar. Nesse imenso cemitério vivo, que vem murmurando fados a beijar as praias deste

Jardim da Europa à beira-mar plantado

nesse imenso cemitério descansa a glória de Portugal, cuja história é um trágico naufrágio de séculos. E neste murmúrio do oceano, estes queixumes que vêm do seu seio quando o Solo nele se põe, não são porventura as vozes das pobres almas portuguesas que vagueiam errantes nas suas ondas? Não pedem auxílio aos vivos? Não é aqui o mar o Purgatório? Sim, aqui o Purgatório é o mar; um purgatório de águas traiçoeiras, não de fogo; as suas ondas são as suas chamas. O mar, que foi a glória de Portugal; o mar, que lhe deu eternidade na história humana, o mar que o devorou, o mar o que o iniciou

No gosto da cobiça e na rudeza
Duma austera, apagada e vil tristeza

como cantou, em união com o mar, Camões.
Apagada e vil tristeza! É isso o que se vê hoje aqui. E ao vê-lo ocorre pensar se as almas serão as dos que descansam debaixo da terra, nos templos ou junto a eles, e no seio do mar, ou não serão antes aquelas que habitam nos corpos dos que por aqui vemos a lidar e a ganhar o pão de cada dia. Portugal é hoje um purgatório povoado de almas."

Miguel de Unamuno
in "Portugal, Povo de Suicidas", Letra Livre, 2012.

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