segunda-feira, 2 de setembro de 2013
Ambiguidades democráticas
"A situação no Egipto evoluiu para uma daquelas encruzilhadas que embaraçam as boas almas liberais e as instituições simpáticas e cooperativas. Como uma narrativa pícara de Boccaccio ou Maquiavel, um conto perverso de Gógol ou Púchkin, até uma daquelas ficções curtas de Borges ou Bradbury, quando bruscamente percebemos que o bem e o mal ficaram pelo caminho, a bússola também e não sabemos onde estamos.
É assim no Egipto, onde os clichés ideológicos esmorecem e desaparecem perante a brutalidade dos factos e das imagens dos factos: no começo havia a ditadura de Mubarak, uma cleptocracia familiar detestável; os democratas (incluindo a Irmandade Muçulmana), desceram à rua e a comunidade mediática euroamericana aplaudiu; os generais egípcios, iluminados pelas luzes da liberdade, trataram de pôr o velho ditador a andar e a família na cadeia. Depois seguiu-se o processo que, desde o fim da guerra fria, do Haiti ao Mali, do Iraque à RDC, vemos ser aplicado — eleições livres e justas, com ou sem observadores internacionais, mais chá e simpatia, publicação dos resultados, tomada de posse. Uma festa.
Os Irmãos Muçulmanos e Morsi ganharam as eleições como minoria mais votada, como o NSDAP de Adolf Hitler em 30 de Janeiro de 1933.
Daí o dilema complicado — ‘o povo é soberano, com a democracia há sempre soluções, os eleitores não se podem enganar, há que respeitar-lhes a vontade’. Mas a teoria da bondade popular e democrática pode entrar em crise: os islâmicos começaram a queimar igrejas cristãs, quiseram cortar as liberdades dos não crentes, impor e alargar a prática corânica numa sociedade em parte laicizada? Foi a vez dos laicos saírem à rua e dos militares, aproveitando a boleia do povo, prenderem o Presidente democraticamente eleito (o primeiro civil do Egipto moderno) mais as lideranças dos Irmãos.
A seguir, o povo da Irmandade saiu, por sua vez, à rua em nome da democracia. E aí os generais entraram ao modo militar e securitário de lidar com protestos de rua — com helicópteros, tanques e as balas dos snipers que anonimamente vão eliminando os agitadores. Ou o desgraçado que está próximo do agitador, vá-se lá saber…
Assim os Irmãos, que começaram por ser maus, que passaram a bons contra Mubarak, ainda melhores quando ganharam a eleição, que voltaram a maus no poder, estão outra vez a voltar a bons, já que são mártires e perseguidos. E os militares fazem o percurso contrário.
Os ocidentais cortam agora os apoios. Mas os países árabes conservadores — sauditas à frente, com os biliões de ajuda (têm sido eles que têm aguentado a economia egípcia, desde que a Primavera Árabe afugentou os turistas), já disseram que cobrem a parada. Ou seja, não será esse o problema.
O problema é que a democracia tem duas versões, que são contraditórias — uma, à Rousseau, é a vontade sagrada e absoluta da maioria, que nunca se engana. Noutra — ao modo de Locke, Smith e Mill dos Founding Fathers americanos — é a protecção de um núcleo de direitos individuais, anteriores à própria comunidade política e que devem ser preservados mesmo contra a maioria.
Duvido que isto aproveite muito aos egípcios, mas aqui fica."
Jaime Nogueira Pinto
in "Sol", 20 de Agosto de 2013.
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